17.8.06

Entre-ontem

Descobri, para grande alegria minha, que o tempo não tem pressa, não tem passo nem compasso, mas também não tem espera. Desde há muito tempo que não venho sentar-me no banco; de fora das sebes altas do parque, mironejo para dentro embiqueirado nas unhas dos pés. Nada vejo que não seja saudade, mas falta-me mais, falta-me novamente a vontade.
Todos os dias relembro o último, sempre o último, e o último parece-me ontem.

No entre-ontem fiz muitas coisas...

21.2.06

Vi numa folha caindo.

Vi numa folha caindo, dois meninos que brincavam no parque e se estilhaçavam com bocas de sabedoria, construindo em alicerçes de lego um pódium imaginário.
Argumentavam, comprovadamente, qual dos dois o mais esperto.
Mesmo em pequena sabedoria, sempre há um que sabe menos.
Admirado com a grandeza dessa pequenez, nem ouvi o Sr. Afonso a chegar, só sua rouca e sonora voz.
"Meu filho, saber mais que outro não lhe dá direito de julgar, lhe dá o dever de ensinar."

3.2.06

Meu, nosso parque.

Há muito tempo que não ia ao parque.
Hoje voltei a visitá-lo.
Estava despido, árvores magras, bancos vazios, mas cheio de silêncio, cheio, cheinho.
Assim que passei o respeitoso portão de ferro, senti que algo havia mudado, foi como se subisse para umas mãos enormes que agora me levavam celestialmente por entre os troncos das árvores. Este não era o costumeiro parque.
Este era mais calmo, mais carinhoso, parecia até mais feminino. Parecia falar comigo a cada banco que surgia, e parecia fazê-lo com as vozes de outros colegas de um outro parque. Mas a cada banco que para trás ficava, eu sentia saudade.
Após mais uma curva e um tronco despido, avistei um perfil familiar. Era o Sr. Henrique.
Fazia tempo que não o via, já desde o outro parque.
O Sr. Henrique era um homem alto, semi-careca, na casa dos quarenta anos, e sempre elegante, mas sempre com um "olhar fixo no mais além". Foi tal e qual a descrição que a Dona Carminha havia feito dele a primeira vez que me contou a sua história, ainda antes de eu o conhecer.
Segundo ela, o Sr. Henrique nem sempre fora assim. Havia sido sempre muito reservado, mas "o seu olhar era um riso maior que o da boca". Mas, o Sr. Henrique havia amado... E este mas pareceu-me estranho.
Segundo me confidenciou a Dona Carminha, o Sr. Henrique, ainda nos tempos de estudante de Direito, havia perdido uma namorada, "futura noiva", da qual "gostava muito", num acidente de automóvel. Nunca ninguém os via zangados ou tristes, "eram o espelho da felicidade". Ela era uma moça simples, alegre e muito carinhosa, juntos faziam sempre a sua volta pelo parque, ...pelo outro parque.
Hoje, o Sr. Henrique tem os olhos "fixos no além", namorou outras moças, mas nunca se "fixou" com nenhuma delas. Segundo a Dona Carminha, o Sr. Henrique tinha o estranho hábito de todas as noites colocar um par de chinelos a mais na beira da cama. Uns chinelos novos, de senhora, como se esperando a fantasiosa Cinderela, cujos pés de tamanho exclusivo, neles encontrassem seu aconchegado refúgio.
Passei pelo Sr. Henrique e os seus lábios replicaram a minha salvação, mas os seus olhos apenas intervalaram o além.
Este parque é muito parecido com o outro, mas já não é o mesmo.

29.11.05

Estações da vida.

Nunca a havia visto.
A sua cara não era nem familiar.
Mas ela ali estava. Serena, expressão suave, cabelo grisalho.
Mesmo antes que pudesse conhecê-la, já havia partido. Não se adiantou, eu me atrasei.
A imagem do seu rosto não saiu da minha cabeça durante algum, bastante tempo. Um queixo copiado de Vénus, um nariz aquilino e uma pele cheia de história ...e de histórias.
Alguns dos que a fixavam, haviam-na conhecido e reconhecido. Os olhos do Sr. Afonso caíam sobre ela, como se enviando uma última mensagem, um pequeno adeus, como ele mais tarde me desvendou - um até breve.
Em mais uma volta pelo parque, me despedi do verão, também já partido. Não se adiantou, eu me atrasei.
O Outono sempre chega, e por mais que se goze o verão, sempre soube a pouco. Mais tarde virá o Inverno e também essas folhas douradas que parecem ter aprisionado em si os últimos raios de Sol, também elas sucumbirão. Sob as gordas gotas do Inverno apenas os troncos, profundos, eternos, permanecerão.

Eu me atrasei, mas um dia apanho ela.

16.9.05

Às vezes...

Hoje num banco do jardim encontraram uma senhora morta.
Quando cheguei ao parque o aparato era grande. Já mil histórias corriam do facto sucedido.
Nunca gostei desses ajuntamentos onde os pescoços se alongam mais e mais, tentando encimar todas as outras cabeças. ...

1.9.05

A paixão de Cristo...

Hoje entrei no parque pela porta dos fundos, mesmo ao cantinho, onde estão os cedros e a fonte do repuxo. Gosto de entrar por aí em manhãs como esta, claras mas frescas, com um ar molhado mas saboroso que parece lavar-nos a cara. Adoro manhãs como esta.
Sempre que entro por alí, entro na ilusão de um dia ver um cervo ou uma corsa a beber da água fresca do regato. No fundo, o regato não passa de sobras de água que descaiem da fonte, mas em manhãs como esta, e com a erva verde, húmida e macia que tapeteia o chão, tudo parece mais, tudo parece melhor, tudo parece... sem o ser.

Hoje não me quis ficar pelos primeiros bancos. Não, nesses não, hoje não. Hoje quero ir mais além.

No sexto banco que passei, sentados, estavam o padre João e o engenheiro Luís. O padre João, levantando-se do banco, logo me fez Operação STOP - "Então meu paroquiano, andas por aqui? Não te tenho visto na missa. Por onde tens andado?" - O padre João era um padre novo, em idade e na paróquia. Era estimado por todos, sobretudo porque as suas acções eram coerentes com a sua palavra. Coerentes... Coerência... palavra tão nova.
Ainda mal me havia esquivado à autuação do padre João pelas minhas faltas cristãs, já o engenheiro Luís me dava o primeiro tiro - " Então e tu, acreditas na paixão de Cristo, que Jesus se tenha apaixonado pelos homens?"
Era óbvio que estavam a atirar-me para o meio de um batalha, única bala para dois homens, um chapéu para duas cabeças, um juiz para dois condenados.
Anuí, - Sim, acredito.
- E acreditas que Ele ainda te ama? - recarregou novamente o engenheiro.
Fiquei parado, mudo, em silêncio, a pensar no que poderia, ou não ter mudado.
Ainda antes que eu pudesse ter qualquer reacção, já o engenheiro Luís encostava a bola no fundo das redes - Viu padre?! É como eu lhe digo, uma coisa é paixão, outra é amor. A paixão é o primeiro olhar, o desejo, a conquista, a descoberta. O amor é o depois. Depois da descoberta. Já não há fogo, há calma; já não há desejo, há preocupação; já não há conquista, há manutenção."
O padre e eu ficamos à espera da bola voltar ao meio campo, mas ele ficou lá, na baliza, pondo ela no berço das redes:
- Cristo teve paixão por nós, sim, padre. Teve muita, até demais. Mas não pôde ter amor...

26.8.05

Você assina?

Hoje, na volta pelo parque encontrei o senhor Inácio. Fazia tempo que não o via.
O senhor Inácio é daqueles velhos carinhosos que sempre tem uma palavra amiga. Não queixam das suas doenças, não queixam da sua reforma, trazem sempre a calma pintada no rosto e fixam cada momento da sua velhice.
O senhor Inácio era carpinteiro, o melhor que já conheci. Fazia portas, janelas, escadaria, tectos, enfim, tudo que o cliente quisesse que fosse feito em madeira. E o senhor Inácio fazia-o bem. Ele adorava trabalhar a madeira. Quem visse o senhor Inácio esculpindo um qualquer pedaço de pau, se detia maravilhado como criança em tenda de circo. Parecia que a madeira, em conluio com seus dedos nus, se desfazia e se ajeitava na forma exacta e pretendida do artesão. Seus dedos pegavam sua dama, ainda tosca, e dançavam com ela. Primeiro, em passos desajeitados, depois em passos mais leves, e ainda mais leves, até que, por entre piruetas de cinderela, se finava a musica e uma nova, elegante e formosa peça se havia desnudado.
Era esta a magia da sua alegria. Nunca havia trabalhado por dinheiro. Na verdade, e segundo ele próprio num outro passeio me confidenciou, nunca sequer havia trabalhado - "comecei a brincar fazendo meus próprios carrinhos e acabo brincando em fazer os berços de meus netos".
Hoje, e mal me viu, sorriu logo e esta é sempre a melhor salvação que se pode receber num dia bonito como este em que as fitas do Sol fazem corridas por entre as folhagens.
- Viu ontem as notícias rapaz? - perguntou-me ele com os olhos brilhando.
- Vi senhor Inácio. - já sabia que ele estava a falar de uma reportagem que havia passado, onde se desvendava que as grandes empresas preferem funcionários com hobbies que revelassem iniciativa, solidariedade e dedicação.
- Viu o moço que falou? Ele era escuteiro, e o quiseram por causa disso. - O senhor Inácio sabia que eu também era escuteiro, chefe de meus pioneiros, fiel aos meus sábados à tarde passados com eles e entusiasta de uma boa actividade bem ao jeito de Baden Powell.
- Vi senhor Inácio, mas aquela empresa deve ser uma de poucas. Nas entrevistas de emprego que tenho ido, se digo que sou escuteiro, retorcem o olho e me perguntam logo se isso ocupa muito tempo. Não tá fácil.
- Ora, - retorquiu o senhor Inácio - tem ido às empresas erradas. Já deu aulas, já andou de porta em porta a vender tv por cabo, é escuteiro e bom rapaz. Vai ver que daqui a nada tá a cair um emprego do céu pra voçê.
- Oxalá senhor Inácio. Tá difícil.
- O que voçê está procurando?
- Tou procurando trabalho senhor Inácio. Qualquer coisa que tenha a ver com vendas e que seja pra trabalhar em equipa. Sempre adorei isso. Detesto ficar parado no mesmo lugar o tempo todo.
Tenho curso de vendas e curso de professor, quero mais é ensinar, conviver, conhecer, evoluir...
- Continua tentando filho. Mais vale ficar velho brincando e feliz, que triste e esquecido.